Depoimentos

 

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       A  FESTA 

O aeroclube do Ceará, com sede em Fortaleza, até bem pouco tempo tinha uma das áreas mais movimentadas do Brasil, nas práticas aerodesportivas.
Além da escola de pilotagem, curso bastante concorrido, cuja atuação colocou em várias companhias aéreas, profissionais formados aqui, havia o departamento de paraquedismo, com inúmeros praticantes desse esporte que animava as tardes de sábados e domingos, colorindo o céu sobre a Aerolândia, bairro privilegiado por sua proximidade, cuja garotada invadia alegremente o pátio de estacionamento dos aviões e se espalhava pela área ajudando os saltadores a recolherem seus paraquedas. Alguns elegiam seus favoritos e até ajudavam na dobragem para um novo salto. Tudo era festa.
Havia também uma pista de aeromodelismo e o clube de ultraleves. Todos decolavam, voavam, saltavam e pousavam sem incidentes, graças à competente coordenação dos controladores de voo na torre do “Pinto Martins”; tudo funcionava perfeitamente.
Os paraquedistas do Ceará estavam sempre em treinamento. Eram campeões do Norte Nordeste e precisavam manter a hegemonia. A rivalidade era muito grande, principalmente com Pernambuco e Pará, que se revezavam no papel de “vice”.
Paraíba, com dois grupos fortes; a turma de João Pessoa e a de Campina Grande, rivais entre si, que, juntamente com o Piauí, “corriam por fora”, às vezes conseguindo bons resultados.
Paraquedistas são desportistas eufóricos, alguns são mesmo “delirantes”, deve ser pelo excesso de adrenalina provocado pelo ato de lançar-se de um avião em voo.
Numa dessas tardes, alegria, euforia e vibração misturaram-se num caldeirão de emoções e expectativa de fazer “algo diferente”.
Chegou ao aeroclube um avião grande; um DC-3, e claro, todos queriam saltar dele. Seria algo novo para quem saltava de aviões pequenos, que levavam no máximo quatro paraquedistas “enlatados”, com movimentos tolhidos para não atrapalhar o piloto. No DC-3 caberiam todos na mesma decolagem e ainda sobraria espaço para um baile.
O lançamento seria feito em três níveis: na primeira passagem sairiam os alunos em instrução, com paraquedas de abertura semiautomática, os “enganchados”. Eram cinco, saltariam na mesma passagem a 2.800 pés. A segunda passagem seria para os iniciantes em queda livre, a 5.200 pés; por fim, os mais experientes a 7.000 pés.
Fui encarregado de fazer o lançamento das equipes, e, enquanto acertava os detalhes com os pilotos, os participantes da decolagem equiparam-se, inspecionaram-se e embarcaram.
Motores acionados!... O avião taxiava para a pista de decolagem; falei sobre o salto, os níveis de lançamento, o tempo máximo de queda para os saltadores da segunda e terceira passagens e relembrei a todos, os procedimentos de emergência.
Decolamos... aos 2.800 pés o DC-3 aproou a área de saltos; fui para a porta, verifiquei a direção do vento, fiz as correções da rota e mandei a primeira equipe aproximar-se: todos prontos, dei a ordem; já!... saíram os cinco. Olhei para fora... quatro paraquedas abertos. Uma das fitas de abertura estava esticada com o peso do paraquedista, preso quase debaixo do avião. Estava pendurado e rodando sem parar.
Na euforia da equipagem, antes do embarque, um erro foi cometido e não percebido por quem fez a inspeção. A fita de extração da bolsa, que possibilitaria a abertura do paraquedas, ficou estrangulada pelo tirante das pernas... só havia uma solução: cortar a fita e o aluno comandar manualmente o  reserva.
Temendo que o aluno ficasse tonto ou desmaiasse por causa dos giros, corri para a cabine, conversei com o piloto, pedi para diminuir a velocidade do avião o mais que pudesse e mandei subir para 4.000 pés.
Peguei a faca que mantinha sempre presa no meu equipamento e sinalizei para o aluno o que pretendia fazer.
O piloto deu uma longa volta sobre a cidade, em velocidade reduzida, como eu havia pedido. Os motores faziam um ruído estranho; fiquei imaginando o que se passaria nas cabeças das pessoas lá em baixo, vendo um homem pendurado na traseira de um avião.
O piloto aproou tão caprichosamente que não precisei fazer nenhuma correção. Sempre em contato visual com o aluno, sinalizei que chegara o momento; mostrei novamente a faca, ele balançou a cabeça afirmativamente. Fiquei tranqüilo; cortei a fita. Todos correram para as janelas do lado da porta, tentando ver alguma coisa. O piloto inclinou o avião para a esquerda e aumentou a velocidade.
O aluno caiu agarrado à fita cortada, descendo, descendo, eu já me desesperando, até que finalmente abriu-se o reserva. Não demorou muito e ele pousou; indício de que fez uma longa queda.
Agradeci ao meu sexto sentido ter aumentado o nível do lançamento. O restante dos saltos foi realizado como previsto; sem incidentes. Para os que estavam na área, foi um espetáculo a parte.
Coisa de esporte radical.

                                                                                                                                                                         Por  Gabriel Rochetti