Depoimentos

 

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         ROSA HELENA SCHORLING

 

Antes de surgirem as primeiras adeptas do chamado feminismo ela já pilotava moto e avião e usava maiô de duas peças.

Além disto foi a primeira mulher brasileira a saltar de
pára-quedas.

 

Na terra e no ar,
Rompendo barreiras.

 

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A senhora foi a primeira mulher a saltar de pára-quedas no Brasil, em 1940, época em que as  mulheres tinham outro tipo de preocupação. Isso significa o quê?

 

— Eu acho que o mais importante foi a convivência com o meu pai, um homem que vivia além do ano 2.000,  pelos seus pensamentos. Além disso, era descendente de mestre de balão na Alemanha. Foi até inventor de um aparelho chamado “folha de vento”, que controlava a ascensão e a descida de balões. Eu acredito que já vinha no sangue. Eu estudando no Colégio do Carmo, vi passar pela primeira vez o Zeppelin, vi passar o avião Dox e me entusiasmei. Queria saber se ali andava gente. Do Colégio, escrevia para meu pai e ele foi incentivando minha curiosidade.

 

Antes de ser a primeira pára-quedista do Brasil, a senhora aprendeu a voar. Em que ano conseguiu seu brevê de piloto?

- Eu tirei minha carteira de piloto em 1939, com apenas nove horas de vôo. Com 4h e 15m eu fiz meu primeiro vôo-solo. Fui brevetada com nove horas de vôo quando o normal do curso era de 50 horas. E o salto de pára-quedas foi o seguinte : Havia depois da prova Cruzeiro do Sul, dentro da programação da semana da Asa de 1940, saltos voluntários. E eu resolvi me inscrever para fazer este salto.

 

A senhora então já tinha alguma intimidade com o pára-quedas ?

 

— Nada, nada. A intimidade com o pára- quedas foi na hora de saltar. Não tive treinamento, não tive coisíssima alguma. Inclusive, meu instrutor de pilotagem, que era o comandante Gratuliano Ximenes de Oliveira, falou : “Você vai saltar mas não me responsabilizo”. A orientação que ele me deu foi saltar de cabeça  para baixo, contar de um a dez de olhos fechados e puxar a alça do pára-quedas. Foi o que fiz às 11h 45m do dia 8 de novembro de 1940, no Rio de Janeiro.

A senhora estudou no Colégio do Carmo, uma instituição que preparava as meninas de então para serem mulheres prendadas, perfeitas donas-de-casa...

— Realmente eu aprendi tudo isso lá no Colégio do Carmo onde passei oito anos. Eu me formei professora normalista, fiz curso de datilografia, estenografia, piano, pintura, todo o curso profissional onde você aprendia desde a arrumação da casa até a recepção num banquete. Mas eu tinha outras preocupações. Eu sempre vivi mais com meu pai. Ele queria um filho homem e eu sou filha única. Então eu me acostumei com ele a trabalhar na oficina, desmontar máquinas, motores. Quando vinha um carro para conserto eu ajudava a desmontar, guardava as ferramentas dele. Eu vivia mais com ele do que com minha mãe

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Esta convivência com seu pai fez com que a senhora fosse também uma das primeiras mulheres a dirigir carro aqui no Estado?

- Eu fui motorista profissional com a idade de 12 anos. Meu pai tinha um automóvel Opel, ano 1895, que tinha a direção do lado direito e com o câmbio e freio do lado de fora. Foi com este carro importado da Alemanha que eu aprendi a dirigir. A primeira motocicleta aqui de Domingos Martins foi uma Indian de meu pai, na qual aprendi a andar. A primeira bicicleta também foi a minha.

A senhora nasceu aqui em Domingos Martins?

- Não. Nasci em São Paulo de Biriricas, em Cariacica. Vim para Domingos Martins com quatro meses e só saí para ir estudar no Carmo, onde passei oito anos internada e depois em 1939 quando fui para o Rio fazer o curso de piloto. Sabe como é mãe, não é ? A minha achava que toda moça deve se casar, formar o seu lar. Mas quando eu vi, meu pai colocou carro na porta, moto na porta e disse: “Eu não criei você para ser dona-de-casa”.

Na época não era nada comum uma mulher dirigir carro ou moto?

- Não andavam, não. Mas eu corria de moto na Praia Comprida com o Wolgano Netto e o Bruno Becacicci, numa Halley. Eu saia do colégio e de uniforme mesmo eu pegava a Halley e ia correr na Praia Comprida.

 A senhora foi também precursora das provas de motocross?

— Certamente, fui.

Voar sempre foi um sonho para a senhora O seu primeiro contato com o avião como aconteceu ?

- O primeiro contato foi visual, em 1932, no Colégio do Carmo, quando vi o Zeppelin e depois o avião alemão Dox de seis motores (três em cada asa). Aquilo para mim já foi uma coisa sobrenatural. Depois, o senador Carlos Lindenberg, que era muito nosso amigo e sabia de minha vontade de fazer um curso de aviação, me levou no ancoradouro de Santo Antônio para conhecer um hidroavião. Foi quando eu conheci o interior de um avião, o painel, etc. Mas eu tinha uma condição para fazer o curso de pilotagem : terminar o curso de professora. Só depois de concluí-lo, meu pai deu consentimento para que eu fosse para o Rio. Porque curso de professora, naquela época, era o que dava condição de profissionalização para a mulher. Então, quando eu recebi o diploma, falei para meu pai: “Está aqui o diploma”. Em 1937, eu ainda peguei aquela lei de fazer estágio, fiquei um ano trabalhando de graça para o Estado. Eu fiquei em Vitória na casa do Antônio Honório. Quando terminou o estágio, dia 6 de dezembro de 1937, embarquei para o Rio de Janeiro. Foi minha primeira viagem marítima. Embarquei no navio Araraquara. Fui para casa de dona Felicia, mãe de dona Ricardina Stamatitto, que foi minha professora de piano. No dia 15 de dezembro meus pais iam festejar bodas de prata e foram comemorar comigo, no Rio. Eu levava uma carta de recomendação de Ostilo Ximenes de Oliveira, que tinha uma casa comercial em Vitória, para um irmão dele, que era aviador do Exército. Naquela época existia a aviação do Exército e da Marinha. Era o comandante Gratuliano Ximenes de Oliveira. O mais interessante é que quando eu cheguei lá no Campo dos Afonsos com papai e mamãe, pedimos ao sentinela que queríamos falar com o comandante.  Depois eu fiquei sabendo da brincadeira : disseram para o comandante que ele tinha pego uma menina e que ela estava lá com os pais. No dia 15 de dezembro o comandante me levou para fazer o primeiro vôo, mamãe ficou lá embaixo rezando. Quando eu desci, no Aeroporto Santos Dumont  mamãe perguntou o que eu tinha achado. Eu disse que era aquilo mesmo que eu queria.

Aviação naquela época era coisa de homem arrojado. De repente aparece entre eles uma mulher jovem, bonita e pretensiosa. Como foi sua recepção no Campo dos Afonsos, existia muito machismo?

— Não. Não havia reação nenhuma. Pelo contrário, eu tive um estímulo muito grande, muita proteção. O curso de aviação em uma coisa muito restrita, somente gente de posse podia aprender a voar. Para se ter uma idéia, a hora de vôo custava 250 mil réis, que na época era muito dinheiro.

Quem fazia o curso era diretor do banco do Brasil, grandes empresários, inclusive o genro do Getúlio Vargas, comandante Vieira da Costa Gama, fez o curso conosco. Então eles viam que eu tinha mesmo vontade e me apoiavam.

Terminando o curso de aviação a senhora continuou no Rio ?

— Não. Quando eu terminei o curso de aviadora eu voltei para o Espírito Santo e fui ser auxiliar de gabinete no Grupo Escolar Teófilo Paulino.Em 1940 eu fui convidada para participar da Semana da Asa, no Rio.

Fui, tirei o primeiro lugar, saltei de pára-quedas. Foi meu primeiro salto (dia 8 de no­vembro), quando se comemorava o aniversário do Estado Novo (ditadura de Vargas). Quando terminou tudo, meu pai quis me trazer de volta para o Espírito Santo. O presidente do Aeroclube, atual major-brigadeiro Ivo Borges, disse “Não, a Rosa não vai voltar. Ela vai ficar porque a alma dela está na aviação“. Meu pai disse que lá no Rio eu teria despesas. O presidente do Aeroclube disse que daria um jeito. Foi assim que eu entrei pela janela no jornal A Noite.

 

Quer dizer que a senhora também foi jornalista ?

- Eu era arquivista. Meu trabalho era pegar ingresso para os cinemas , assistir os filmes e depois eu pegava os cartazes e tinha que identificar os artistas principais daquele filme. Eu pegava as fotos, identificava e colocava no arquivo.

E como foi que uma mulher bonita conseguiu ficar solteira durante esse tempo?

Eu tive um noivo que não admitia esse negócio de avião, pára-quedas. Quando eu saltei, todos os jornais fizeram a cobertura e ele ficou sabendo. Ele apareceu no Aeroclube e me pôs  na parede: “Você vai ter que escolher, ou eu ou o avião”. Optei pelo avião. Continuei no Rio e, em 1941, foi criado o Ministério  da Aeronáutica. Então eu saí de A Noite e fui ser relações públicas do Ministério. Meu trabalho era quando havia alguma recepção, uma formatura de cadetes... Eu. tomava nota e levava para as redações dos jornais para divulgação. Quando, em 1950, foi criado o Núcleo Aeroterrestre, na Escola de Pára-quedismo do Exército, eu me inscrevi para fazer o curso de pára-quedismo. Foram oito meses de treinamentos intensivos, marcha de 10 quilômetros, acampamentos, nadar 200 metros toda equipada, carregando peso de 60 quilos nas costas. Era um treinamento militar que começava às 5 horas da manhã e terminava às 6 horas da tarde.

A senhora foi a primeira mulher a ser aceita na vida militar da Aeronáutica?

— Fui. Inclusive fiz o curso de enfermagem pela Cruz Vermelha Brasileira e queria ir para a guerra, na Itália. Mas como era a única inscrita pela Aeronáutica não me deixaram ir. Mas recebi a medalha do Atlântico Sul, como se tivesse estado nos campos de batalha.

A senhora ficou na Aeronáutica até quando?

Até dia 15 de janeiro de 1955, quando meu pai foi assassinado aqui em Domingos Martins. Aí eu retornei para o Espírito Santo. Como filha única eu tinha que ficar com minha mãe, já que ela não quis me acompanhar para viver no Rio. Ela disse que se a morte de meu pai tivesse sido natural ela iria, mas da maneira como aconteceu ela não quis sair daqui. Então, fui obrigada a abandonar tudo. Meu médico dizia: “O assassino não matou apenas seu pai, matou também você e a sua mãe”

Você disse que seu pai era um homem avançado para sua época, que vivia além do ano 2.000. A senhora, como mulher, também era muito avançada para sua época...

Era e continuo sendo...

Mas como a senhora convivia com a sociedade capixaba fazendo tudo aquilo que queria fazer, pouco se importando com o que falassem ou pensassem da senhora?

— Ninguém nunca teve a coragem de falar nada na minha frente. Se falavam era pelas costas.

A senhora tem aí na parede uma foto numa praia usando um maiô de duas peças, isso na década de quarenta, quando nenhuma outra mulher pensava em usar. Era fácil para a senhora tomar essas atitudes avançadas?

— Eu sempre faço tudo espontaneamente, não sigo a cabeça de ninguém. Cumpro aquilo que é ditado por lei, cumpro as minhas obrigações. Agora, o restante, na minha vida particular, faço tudo aquilo que eu quero. Inclusive meu pai me deu a liberdade quando foi cortado o cordão umbilical que me prendia a minha mãe. Então, desde esta época eu sempre tive total e plena liberdade. No colégio eu era muito levada e tal, mas cumpri com minhas obrigações de estudar. Cumpro com minhas obrigações sociais, voto, faço tudo aquilo que as leis mandam. Mas na vida particular, aquilo que me dá vontade de fazer, eu faço.

A senhora diz que foi livre a partir do corte do cordão umbilical. Com toda esta liberdade que a senhora preservou e praticou durante toda a vida, como viu nascer, muitos anos depois, o movimento feminista. Como a senhora viu essa luta das mulheres por maiores espaços, reivindicando igualdade, tudo isso que a senhora já havia conseguido?

- Eu não me julgo feminista. Mas acho que as mulheres são muito castradas, .ficam com medo de se destacarem, de fazer alguma coisa. Acho que elas devem ser mais espontâneas. Sei que tem muita gente que quer fazer alguma coisa mas fica com medo de que a vizinha fale, que o marido reclame, que os filhos fiquem impondo. Eu acho que a gente deve fazer aquilo que tem vontade, desde que não atente à moral e à vida pública.

A senhora conviveu na intimidade com o poder. Foi amiga do presidente Getúlio Vargas, conviveu com ministros e altas autoridades. Como foi esta experiência?

Foi de pura camaradagem. Getúlio Vargas todos os sábados, dispensava a sua guarda e ia para o Aeroclube. Ali nós tomávamos nosso uísque, comíamos nosso churrasco. Ele era um companheiro como outro qualquer. Os brigadeiros, os generais, os coronéis, a mesma coisa. Havia o respeito à hierarquia, mas na maior convivência, na maior simplicidade. Com o Jango foi a mesma coisa, tanto é que saiu uma reportagem com o título: “A pára-quedista que deslumbrou os presidentes”.

Depois desta vida tão intensa, a senhora hoje se refugia aqui neste lugar maravilhoso em Domingos Martins. Não sente saudades?

Demais. Eu venho matar minhas saudades aqui no sítio. Mas eu tive uma satisfação muito grande, depois de 47 anos de ter saltado pela primeira vez : ser convidada para participar do VII Campeonato Mundial de Pára-Quedismo, em Foz de Iguaçu. Lá eu recebi uma placa de prata como primeira pára-quedista brasileira e pelo que eu já fiz pelo pára-quedismo no Brasil. Fui para Foz com todas as mordomias possíveis e imagináveis.

A senhora recebeu esta homenagem no Paraná. E aqui no Espírito Santo, tem recebido muitas homenagens?

- Nenhuma.

A senhora tem um serviço prestado ao Espírito Santo, divulgou o Estado fora daqui. Esta falta de reconhecimento não a deixa ressentida?

— Não. Não fiz isso para eles, fiz para mim, para o meu pai. Em 1940, quando eu fui participar das comemorações da Semana da Asa, a primeira pessoa a quem eu me dirigi foi o interventor João Plunaro Bley e ele disse que não se interessava. Foi aí que o desembargador Danton Bastos, que era seu inimigo, disse que daria um jeito para eu ir como representante do Espírito Santo. Mas quando meu nome saiu nos jornais e meu salto foi filmado e visto no Cine Glória, Adelpho Poli Monjardim era prefeito de Vitória. O capitão Bley chegou para ele com o jornal e disse: “Olha a nossa representante”. A única homenagem que eu recebi, quando eu concluí o curso de piloto, foi de Otaviano Santos, que na época era deputado. Foi feita uma recepção na Câmara. Na época eu vim com o brigadeiro Astor Costa

Outra personalidade importante aqui no Estado foi seu pai, que inclusive construiu o relógio da Praça Oito?

Meu pai veio para o Brasil em 1908, acompanhando o meu avô, que era um dos chefes das Fábricas Krupp, na Alemanha, onde meu pai fez o curso de engenharia e especializou-se em armas e relógios. Meu avô ganhou uma viagem e escolheu o Brasil. Papai como primogênito veio com ele. No Rio, vovô morreu e meu pai não quis mais voltar. Ele acabou em João Neiva, trabalhando na estrada de Ferro. Ali ele conheceu minha mãe, que era austríaca e começaram a namorar. De lá, veio para Vitória, para trabalhar numa companhia inglesa que fazia a dragagem do Porto de Vitória. Minha mãe, que tinha voltado para a Europa, acabou ficando na Argentina por ter que fazer uma operação de apendicite e lá ficou, trabalhando como enfermeira. Ela voltou para o Brasil trazendo o enxoval dela e de meu pai. Eles se casaram no dia 15 de dezembro de 1912.

O pai da senhora não sofreu problemas aqui no Brasil durante a Primeira Guerra Mundial,  já que era alemão?

- Durante a guerra de 1914, o presidente do Estado era o coronel Francisco Schwab, que garantiu ao meu pai que ele não seria perseguido. Mesmo assim, por meu pai ser alemão, achou que ele deveria mudar. E ofereceu a fazenda dele, em Cariacica, para meu pai ficar. Algum tempo depois ele adquiriu uma propriedade pequena e começou a trabalhar por conta própria, consertando relógios e armas. Foi ali, em São Paulo de Biriricas, que eu nasci, em 1919, depois de sete anos que meu pai e minha mãe tinham se casado. Como meu pai era luterano, veio para esta casa que foi construída pelo primeiro imigrante alemão que veio para Domingos Martins.

Foi aqui que ele construiu o relógio da Praça Oito?

O primeiro relógio que fez foi aquele que ele doou para a igreja de São Paulo de Biriricas, em 1925. O da igreja de Carapinho ele doou em 1937 e o relógio da Praça Oito foi feito quando o Adelpho Poli Monjardim era prefeito. Aqui ele continuou vivendo e trabalhando até o dia 15 de janeiro de 1955, quando foi assassinado por uma arma que havia consertado.

EXTRAÍDO DO JORNAL A GAZETA DE 7 DE AGOSTO DE 1988  - VITÓRIA (ES)